sábado, 22 de maio de 2010

O samba, o futebol e a imprensa

Resultado. Se os fins justificam os meios, como diz-se por aí, ouso corrigir: os fins justificam o fim. Escolhi a profissão por amor ao jornalismo, pelo convívio com as palavras escritas em casa, pelas conversas em rodas de bar, outras de samba. Também o futebol me ajudou a selar minha vocação, misturada ao sangue que corre nas veias deste velho que vos escreve. Apenas o nascimento físico deu-se em terras italianas, mas nasci outras tantas no Rio de Janeiro. Vim pra cá ainda menino e logo me vi rendido pelas paixões imensuráveis destas bandas. Cantar e bater palma nas rodas de samba, jogar e assistir a partidas de futebol e, para relatar tais privilégios que a vida nos proporciona, escrever. Na minha vida, samba, futebol e jornalismo sempre estiveram muito ligados, numa relação respeitosa, mas apaixonada. Justamente aí. Hoje em dia é diferente: a paixão é uma espécie em extinção.



Também me refiro ao sentimento amoroso, o afetivo. Apaixonar-se, atualmente, dá trabalho. É arriscado, não há garantia da recíproca, geralmente a paixão é injusta. É ingrata. Mas não é minha intenção, aqui, falar sob ótica dos amantes, nada de montéquios ou capuletos. Meu protesto é em relação ao polimento do politicamente correto, da adaptação das paixões, expressão que, obviamente, é um paradoxo utopista. Ganhar. Vencer. Não importa o método, não precisa jogar um futebol bonito, não precisa compor samba bonito, não é (mais) preciso uma boa matéria. Produz-se o resultado. Produz-se a plateia.



Recentemente, na lista de convocação para a Copa do Mundo, Dunga deixou o recado. Escolheu jogadores que seguram o resultado. Atletas que não jogam bonito, mas que – para ele – executam bem a tarefa: vencer. Em outro campo, mas já faz uns vinte e poucos anos, não é de hoje, o samba é composto para vender. Para tocar nas rádios. Resultado? Sucesso. Sucesso? Resultado. Antigamente, quando um samba era cantado no terreiro, e rapidamente todos decoravam a letra, seguindo o coro das pastoras, era quase proibido que o o samba saísse dali. Não podia tocar fora. Se desse no rádio, perdia a graça, perdia o sentido. Fazia-se samba por amor ao samba. Pelos sorrisos, pelo som das palmas, pelas melodias. Pelas primeiras partes, pelas segundas. No carnaval, o samba era o principal elemento de uma escola. A espinha dorsal. Se o samba fosse bom, a bateria se encaixava como luva na melodia, na levada. Vencer o desfile? Isso não importava. O samba bem feito era de emocionar o publico, despretensiosamente, se aprochegando devagar. Como no carnaval de 1964, vencido pela Portela. Quase ninguém lembra do samba campeão da escola de Oswaldo Cruz. Mas o que não sai da memória foi o quarto lugar do Império Serrano, com “Aquarela Brasileira”. Resultado, como se vê e se viu, não é vitória.



Quando o assunto é a imprensa, aí, meus amigos, o negócio complica. Temos um jornalismo careta, alinhado ao politicamente correto. Não temos mais senso crítico. As fontes secaram. As assessorias cresceram. É preciso sempre checar, confirmar, rever, reavaliar. O jornalista não pode (nem sabe mais) arriscar. Sua relação com a fonte agora é sempre on, sempre formal. Fabricou-se uma relação alicerçada no...Resultado. A matéria rende se der ibope. A reportagem é boa, se vai interessar ao público, não necessariamente se vai abrir alguma discussão. Como no samba e no futebol, o jornalismo hoje em dia é feito de fora pra dentro. É premeditado, ensaiado, contido: é político. Compõe-se samba hoje com oito, dez compositores. Escala-se um time com oito, dez volantes. Compõe-se uma redação de jornal com profissionais jovens e crus, que aceitam cargos de suma importância em troca de pequenos salários. Exploração velada, um suborno moral. O estagiário de jornalismo é uma espécie de volante e de oitavo compositor. É dispensável, como qualquer um de bom senso perceberia, mas hoje em dia é considerado fundamental. São frutos da pressa social, da pressa intelectual: são resultados do resultado.



Perdeu-se a paixão pelas paixões. Querem adaptar o inadaptável. O samba, o futebol e a imprensa. Nunca foi tão difícil fazer o simples. Nunca foi tão simples fazer o difícil. A ternura dos pequenos gestos, de um drible bem dado, de um refrão bem marcado, de uma reportagem bem feita, não cabe mais no resultado. Querem fazer balcões de negócio das nossas paixões. Não vamos deixar. Nunca. Coração na ponta da chuteira: saber que há dribles mais bonitos que gols. Lembrar: que o sambista é o poeta esquecido, como diz a música. Viver: essa paixão insaciável que move o jornalista, como diz García-Márquez. As paixões não cabem em nós, nós é que cabemos nelas: uma entrega sem fins.

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