quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A gruta de São Conrado

Em tempos idos, refiro-me a séculos atrás, havia um rapaz que vivia para caçar. Italiano, como este que vos escreve, costumava se aventurar em florestas longíquas, sempre às margens do rio Trébia, na província de Piacenza. Conrado Confalonieri era rico, dado a festas e bebedeiras, divertia-se com seus bens. Mas acabou se casando cedo, o que não lhe impediu que sua vida de esbórnia e prazeres carnais.


Certa vez, impulsionado pela coragem de algumas jarras de vinho, foi à floresta caçar faisões e lebres. Não me recordo como deu-se o inusitado, mas o que ocorreu é que Conrado ateou fogo na floresta. O incêndio alastrou-se rapidamente e num estalar de dedos toda a vegetação foi devastada pelas chamas. Foi uma correria só e o jovem caçador, rico e boêmio, defenestrou-se num piscar de olhos. E precisavam descobrir culpados.


Galeazzo Visconti, o alcaide da província, receoso ao investigar de quem seria a responsabilidade do infortúnio, talvez porque já soubesse, prendeu alguns suspeitos –mas sem as devidas comprovações do crime. Sentenciou o primeiro suspeito, condenando-o à morte porque estava, ora vejam, estava no bosque. Portanto, apagaria-se outro incêndio naquela região.


Quando soube que um inocente seria morto em seu lugar, Conrado confessou-se culpado pelo acidente incendiário. Não obstante, o jovem abandonou a vida de luxo e ingressou na ordem dos franciscanos. Por volta do ano de 1300, abandonou a esposa – que acabou por viver, também, só num convento.


Conrado trocou de mosteiros por um tempo. Depois, sempre fugindo do convívio de quem queria lhe visitar, instalou-se numa gruta na região dos Pizzoni, que viria a ser batizada com seu nome.


A gruta de São Conrado também existe por aqui, abaixo dos trópicos. Fica próximo ao maior favela urbana da América Latina, quiçá do Ocidente. Diria eu que quase um acidente geográfico, com perdão do trocadilho. Quem mora na Rocinha é gente boa, gente do bem. Quem domina a Rocinha, faz tempo, não é Dênis?, é a bandidagem. O tráfico de drogas é o braço financeiro do crime. É a moeda de troca. Há trinta anos, quem virava vagabundo – na linguagem popular – costumava ter um passado. Era trabalhador, mas foi humilhado pela polícia: vira bandido. Tinha emprego, mas foi esculachado pelo patrão, depois mandado embora: vira bandido. Ia pro colégio, mas perdeu o pai morto no assalto: vira bandido. Tornar-se criminoso, trinta, quarenta anos atrás, ainda havia uma justificativa, ainda que fosse mentirosa. O bandido tinha ainda a “preocupação” de se justificar – e de explicar, para comunidade e para família, o porquê da vida bandida.


O que se viu nesta batalha de São Conrado foi a materialização do pensamento e-se-um-dia-eles-descerem-como-fica? “Eles” já desceram faz bastante tempo. Mas o “eles”, para a classe rica, são “aqueles que moram nas favelas”. Mas o “eles”, para mim, e outros, são os bandidos, os traficantes de armas e de drogas, os marginais que desafiam o estado debochando da sociedade. O que os ricos vivenciaram nesta floresta de Conrado, nesta selva urbana, foi exatamente ao que os “favelados”, ou melhor, as pessoas de bem que vivem nas favelas, são submetidos em incursões policiais daquele lado de lá, o da pobreza, o do esquecimento. “Nós” fomos “eles” no último sábado? Não. Nós somos eles, porque somos todos.


Fuga desordenada, tiroteio no meio da rua, estampidos, tiros, gritos, gente chorando, marcas de bala, desespero. A cidade é uma favela, cercada de Rios de Janeiros por todos os lados. Se Conrado incendiasse a selva hoje, quem seria condenado à morte? Nós ou eles? Não faz sentido recolher-se em retiros franciscanos, ou upepêanos, retiros panfletários. É festa na floresta. Quem mora na favela pôde assistir, de camarote, como a violência bate à porta dos ricos. Ela incomoda. Como disse um conhecido que mora por lá:


- Rapaz, pela primeira vez vi algo assim: uma pá de bacana correndo de um lado pro outro, tudo ali, na beira da praia. Nego tocou o terror mermo! Era madame correndo e se jogando no chão, carro largado na pista, tiro a rodo! Agora eles sabem como é aqui em cima, certo? A vagabundagem faz o que quiser, irmão. Mas agora foi pra vitrine.


Foi pra vitrine. Estamos todos encurralados no estoque social, amedrontados com a rua, por isso escondemo-nos por trás dos outros. Não enfrentamos o problema, porque a floresta fica longe e sempre vão encontrar um culpado que, de culpa, só tem o crime de morar no bosque ou na floresta. Ora vejam: morar em favela sempre foi crime, mas agora, sair dela, também o é. São Conrado, és uma gruta escondida dentro da floresta de nós mesmos. E não há fogo que arda mais nossa culpa em punir – do que ser punido.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Os maquinistas estão chegando

Prosseguindo, senhores, percebo que estou no fim. Há certos momentos que devemos nos curvar aos fatos. E tal consternação chama-se constatação. O jornalismo segue o caminho de volta, retrocede ao que o deslegitimou. Matérias encomendadas justificam o balcão de negócios ao qual transformou-se meu jornal. Ouço durante as reuniões: “Você gosta de cobrir Cidade, não gosta? Então você vai fazer Saúde. E você aí, rapaz? Educação? Então, Política.” E assim desenrola-se o calvário que é trabalhar para quem não pensa. Ou de quem pensa para quem não trabalha. Enfurnar-se dentro de salas recém-erguidas (onde o ego é maior que o espaço físico) é praxe entre os diretores do jornal. Gargalhadas sublinhadas pelos contra-cheques gordos, política do terror psicológico, reportagens que são releases eletrônicos. Chapa branca, quem dera, as chamo de chapa transparente, somos retrocesso intelectual.


Quisera eu ser ignorante, porque seria, no mínimo, menos infeliz. Desconhecer o mal invisível. Não suspeitar de presságios, acomodar-me em cumprir tarefas, transformadas em objetivos de vida. Lustrar os sapatos dos magnatas com a língua. Negociar-me por menos do que sou – e do que gostaria de ser. Sou tolido profissionalmente, ao passo me prometem horizontes de cristal, fora os vis metais que me corrompem o bom senso. Não me reconheço mais e tudo que planejei escoa água abaixo pela latrina do fracasso. É, eu perdi, mas pior que o mau perdedor é quem vence sem merecer.


Sei que tenho sido redundantemente revoltado, mas é coisa de italiano, reclamar e falar alto, mesmo quando escrevo. Esclareço que, à oportunidade que me foi dada quando garoto, fiz das reles chances de progredir na profissão a motivação mais que necessária para praticar o ofício impresso. Surgi ainda empacotando periódicos nas ruas do centro do Rio, poucas horas antes de amanhecer o dia, e o dia, ao amanhecer, sempre me afagava os olhos cansados das letras miúdas, que lia sentado no chão da Praça Mauá. Eu enfileirava os jornais velhos fingindo serem novos, para ter a leve sensação de que poderia ser dono das notícias, que era, nem que fosse de forma clandestina, o proprietário das informações. O tempo me pertencia quando me cobria com as folhas velhas dos jornais de ontem e dos outros ontens. Para que os amanhãs chegassem logo.


Mas hoje faço o inverso. Empilho jornais novos fingindo serem velhos, faço um trabalho que não é o meu, escrevo palavras que não mais serão minhas, porque não foram nunca, porque não serão sempre. Acato ordens sem pestanejar, mas meus olhos se inundam de uma cólera surda, de um sofrimento pontiagudo, que me ofusca as tintas das palavras, que me encerram os sonhos de garoto, quando saía de casa e corria junto aos trens pensando que os vagões eram pessoas, pensando que o destino eram estações. Não sei quantas locomotivas sou, mas palavras, meus trilhos: jornais tornaram-se máquinas de informação. Nós? Café com pão, café com pão, vixe Maria, o que foi isso, maquinista?